Carolina
"Degradou.
A doida agora só respeita ricaço, só fala em viver intensamente.
Diz
'fantastique'
como quem flatula.
Aposto,
em um mês ela me procura! Mandou cartão
do Louvre, Paris, cheri... já sei, é pra
garantir
a transa-matinê, que venha! Deixo a marca dos meus beijos naquele
pescoço só
pro
ricaço
ver como é que eu trato dela. Aposto que ele tem uma verruga no
lugar do
pau!
Antes,
Carolina sussurrava no meu ouvido os poemas do Lorca, ela ama o
Lorca! O
lençol
deslisando ombros, seios, o púbis encrespando a seda, ah aquelas
mãos...
`
... La luna es un pozo chico,
las
flores non valen na-da!
lo
que valen son tus brazoz,
quando
de noche me abrazan... '
fazia
como a cigana passional, aquela voz contralto, mão
esquerda espalmada, a direita
cerrada,
em pé sobre a mesa...
‘ … Ya
luchan la paloma y el leopardo
a
las cinco de la tarde...
...
la muerte puso huevos en la herida...
a
las cinco en punto de la tarde...
...Ay
qué terribles cinco de la tarde!’
Não
me lembro mais do poema todo, ela carregou a pôrra do livro.
Um
fogo invadia nossa cama, Carola usava meus braços à guiza de
rédeas, viajava, e eu morria.
Em
TPM, ela lia alto Bakunin, Evtutchenko, Plínio Marcos. Mas decór e
nua, só o Lorca... maldita! me usava como fio-terra do tesão dela
por poeta morto! Ela transa com Lorca, Neruda, Verlaine, Rimbaud. Ah,
como é mesmo o nome daquele poeta português?
‘…vem
por aqui, dizem-me alguns,
certos de que eu os seguisse...’
ah é
José
Regio. E eu, cavalo nesse páreo?
Uma
vez, paramos na frente dum ônibus pra ver o que aconteceria, o
motorista mandando a gente tomar no... e nós, estátuas lívidas.
Nunca um dia igual ao outro!
Quando
ela fez trinta anos, fingi esquecimento e fomos ver o filme “Cria
Cuervos”, do
Saura. Dramática e muda, vestiu-se de luto, lenço na cabeça como
quem vai pro cadafalso. Após o “THE
END”,
ela sentou-se num degrau e repetia:
'Cria
cuervos e ellos te sacarán los ojos...'
Antes
que ela sacasse os meus ojos, arrastei Carola pra fora do cinema; meu
presente de aniversário se declarava na enorme faixa entre-postes:
___________________________________________
CAROLA AMADA , FELIZ ANO NOVO DE VIDA!
____________________Joca___________________
O
branco daqueles grandes olhos parecia que ia escorrer.
Agora,
de Paris com outro ... ‘Saudade
mon amour??’
foda-se!
Quero
vin-gan-ça!! Vou ser amante da irmã dela, fica tão grave que nunca
mais!
Imagino
as confidências. A maninha contando intimidades e Carola roendo unha
até sangrar sobre o livro do Lorca, ou sobre a verruga do seu
milionaire!
Beijarei
minha ex-cunhada em público, darei presentes caros, grana eu arranjo
trabalhando feito mula, aulas particulares de guitarra pra
desafinados irreversíveis, pra peruas, executivos, agora, tocar em
comício político só com paga adiantada, pôrra, Deus me defenda!
Ano
passado, quando Carola me flagrou flertando com outra, se mandou.
Ela flertando com todos os seus poetas...
Aí
comprei um papagaio e levei mêses ensinando o bicho a cantar
“Carolina”,
do Chico Buarque, sua única paixão viva. Que trabalheira me deu,
mas o papagaio me adorava. Quando entreguei-o, ela capitulou. Depois,
só porque usei a grana do aluguel pra comemorar a vitória do Brasil
na Copa, e sumi uns dias pra criar coragem... foi aí que ela viajou
com o verruga-de-ouro.
Antes
de partir, a demônia deu o papagaio pra vizinha, ele agora grita,
entre os versos:
-
Arziraaaa, tô cum fome muiééé!
Pra
não pirar recomprei o papagaio. Tá aqui meio doido, o coitado.
Quando
ele abre o bico me dói o rabo da alma. Sabe lá o que é desgravar
um papagaio? Sabe lá o que é deletar esta dor?
Meu
ódio turbinará a vingança... lua-de-mel com a cunhadinha em Cabo
Frio, Rio de Janeiro, fotos, nus, bronzeados.
Imagino
Carola chorando no armário, ela tem mania de chorar no armário.
Antes eu dava colo até que o fim dos soluços e o sono viesse,
pôrra! Agora ela que se afogue, não sou seu Jacques
Cousteau!
Andava
estranha, pensei que era TPM, mas a messalina não falava.
Às
vezes ela me queria depois do almoço, fica fica, eu não ficava, aí
pintou
o verrugouro, ts ts, vai ver ele sentiu meu cheiro nela, o viado !
Carolina
se foi, olhar arrastado, intuindo o que eu ia passar, e agora o
Que
fazer com o cheiro dela pela casa, ‘...under
my skin...’ ?
Se
eu pudesse, rebobinava o tempo e implorava,
-
Carola, conta tudo pra mim...largar de beber ? Eu largo. O cara rico,
Paris? Eu é que vou te amar no pico da Eifell sobre todas as luzes!
vai sair no Le
Monde,
vai virar novela, a gente fica rico!
Aí,
eu a tirava do armário e pedia pra ela conferir o que era seu
como
no ‘Samba
da Volta’
do Vinícius de Morais e juro, nunca mais ela ia chorar sozinha e
trancada. Nem eu ia ficar assim, de borco, estraçalhado, chorando
dentro deste armário, que por mais que eu negue, ainda é dela."