A galinha da vizinha
Gil mora num apartamento no centro de São Paulo, andar térreo e com quintal.
Por isso protege esse espaço com toldo de lona, evitando assim arremessos comunitários. Ali cultiva ervas, flores, temperos e só recolhe o toldo quando o céu de Sampa dá uma brecha pras estrelas.
Num sábado acompanhou sua hóspede argentina Cris até
a porta do prédio, desejou-lhe bom almoço com o namorado
novo e voltou pro apê. Ao abrir a porta, deu com uma galinha
preta no meio da sala. Gil olhou bem pra ela e, com seu jeito
zen, pensou:
“Gente, eu não crio galinha...”
Mas, como anfitrião despreconceituoso, limpou as cácas da
dita, deu-lhe água, pipoca, cuscuz, enfim, o que estava disponível.
Vendo suas oferendas rejeitadas, ligou pro zelador.
– Seu Zé, tem uma galinha preta na minha sala.
– Ah, deve ser a galinha de dona Ovídia, do nono andar.
– Ovídia? interessante. Mas o que é que eu faço com isso?
– Segura ai, que já vou indo!
Enquanto esperava o zelador, Gil viu o rombo no toldo do
terraço e entendeu como ela havia aterrissado.
Chegou seu Zé e ambos foram até o nono andar, onde mora
a dona da bípede.
Abriu a porta uma moça roliça, usando calças justas cor da
pele e um grande blusão preto. A jovem tinha o cacoete de olhar para os lados intermitentemente, como trejeito galináceo. Em seguida veio dona Ovídia:
– Ah, caiu no seu apartamento e não morreu? Que pena,
queria me livrar dela. Achei essa galinha na rua e trouxe pra
casa. Sabe como é, podia ter aí uns ovos. Mas depois percebi
que seus olhos estavam costurados. Pergunta pro seu Zé, ele
é que tirou os pontos.
– Cada ponto tinha sete nós, coisa de despacho. Disse o
zelador, benzendo-se.
Gil sentiu o significado um tanto metafísico: dona Ovídia
gostava de ovos apesar de querer se livrar da ovípara. Sua
filha, vestida com fofo blusão preto sobre a calça justa cor
da pele, olhando rapidamente para os lados, como um xerox
ampliado da galinha. E o nome do zelador não era Zé Gallo?
Com a fúria da moça pela sobrevivência da penosa, Gil
entendeu quem a havia arremessado. Ciúme, pensou ele, mas prorrogou análises. Pediu que levassem a galinha e pagassem pelo estrago do toldo. A moça disparou a gritar:
– Nãããoooo! A galinha aqui de novo, nããããão!
A mãe prometeu encontrá-los na portaria tão logo a filha
se acalmasse.
Gil e Zé Gallo desceram, chamaram a síndica para intermediação, porque dona Ovídia poderia não querer pagar um novo toldo.
A síndica, beata senhora, surtou, ao saber que compartilhava
o mesmo teto com uma galinha de macumba. No afã de socorrê-la, não perceberam a chegada de Cris, a hóspede argentina de Gil entrando no prédio, completamente drinkada, porque o carinha novo já não era mais seu namorado.
Ao abrir a porta do apartamento, Cris ouviu o cócócó da
penosa empoleirada na tevê. Piscou várias vezes e de novo encarou.
A dita continuava, cócóóóó! Entrou sem acreditar na cena.
A galinha, assustada com a presença estranha, voou, deixando cair uma medalha escatológica no negro vestido argentino. Achando estar com delirium tremens, apoiando-se às paredes do corredor, foi até a portaria e, pra completr a
confa, berrou:
– GIL!!!! ESTOY MUY MALA, SOCORRO POR CARIDAD!
cláudia pacce
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